Rubem Alves
A culinária me fascina. De vez em quando eu até
me até atrevo a cozinhar. Mas o fato é que sou mais competente com as palavras
do que com as panelas.
Por isso tenho mais escrito sobre comidas que
cozinhado. Dedico-me a algo que poderia ter o nome de "culinária
literária". Já escrevi sobre as mais variadas entidades do mundo da
cozinha: cebolas, ora-pro-nobis, picadinho de carne com tomate feijão e arroz,
bacalhoada, suflês, sopas, churrascos.
A culinária estimula todas as funções do
pensamento.
As
comidas, para mim, são entidades oníricas. Provocam a minha capacidade de
sonhar. Nunca imaginei, entretanto, que chegaria um dia em que a pipoca iria me
fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu.
A pipoca, milho mirrado, grãos redondos e duros,
me pareceu uma simples molecagem, brincadeira deliciosa, sem dimensões
metafísicas ou psicanalíticas. Entretanto, dias atrás, conversando com uma
paciente, ela mencionou a pipoca. E algo inesperado na minha mente aconteceu.
Minhas idéias começaram a estourar como pipoca. Percebi, então, a relação
metafórica entre a pipoca e o ato de pensar. Um bom pensamento nasce como uma
pipoca que estoura, de forma inesperada e imprevisível.
A
pipoca se revelou a mim, então, como um extraordinário objeto poético. Poético
porque, ao pensar nelas, as pipocas, meu pensamento se pôs a dar estouros e
pulos como aqueles das pipocas dentro de uma panela. Lembrei-me do sentido religioso
da pipoca. A pipoca tem sentido religioso? Pois tem.
A
pipoca é um milho mirrado, subdesenvolvido.
Fosse
eu agricultor ignorante, e se no meio dos meus milhos graúdos aparecessem
aquelas espigas nanicas, eu ficaria bravo e trataria de me livrar delas. Pois o
fato é que, sob o ponto de vista de tamanho, os milhos da pipoca não podem
competir com os milhos normais. Não sei como isso aconteceu, mas o fato é que
houve alguém que teve a idéia de debulhar as espigas e colocá-las numa panela
sobre o fogo, esperando que assim os grãos amolecessem e pudessem ser comidos.
Havendo
fracassado a experiência com água, tentou a gordura. O que aconteceu, ninguém
jamais poderia ter imaginado.
Repentinamente os grãos começaram a estourar,
saltavam da panela com uma enorme barulheira. Mas o extraordinário era o que
acontecia com eles: os grãos duros quebra-dentes se transformavam em flores
brancas e macias que até as crianças podiam comer. O estouro das pipocas se
transformou, então, de uma simples operação culinária, em uma festa,
brincadeira, molecagem, para os risos de todos, especialmente as crianças. É
muito divertido ver o estouro das pipocas!
A
transformação do milho duro em pipoca macia é símbolo da grande transformação
porque devem passar os homens para que eles venham a ser o que devem ser. O
milho da pipoca não é o que deve ser. Ele deve ser aquilo que acontece depois
do estouro. O milho da pipoca somos nós: duros, quebra-dentes, impróprios para
comer, pelo poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar em outra
coisa — voltar a ser crianças! Mas a transformação só acontece pelo poder do
fogo.
Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca,
para sempre.
Assim acontece com a gente. As grandes transformações acontecem quando
passamos pelo fogo. Quem não passa pelo fogo fica do mesmo jeito, a vida
inteira. São pessoas de uma mesmice e dureza assombrosa. Só que elas não
percebem. Acham que o seu jeito de ser é o melhor jeito de ser.
Mas,
de repente, vem o fogo. O fogo é quando a vida nos lança numa situação que
nunca imaginamos. Dor. Pode ser fogo de fora: perder um amor, perder um filho,
ficar doente, perder um emprego, ficar pobre. Pode ser fogo de dentro. Pânico,
medo, ansiedade, depressão — sofrimentos cujas causas ignoramos.Há sempre o
recurso aos remédios. Apagar o fogo. Sem fogo o sofrimento diminui. E com isso
a possibilidade da grande transformação.
Imagino
que a pobre pipoca, fechada dentro da panela, lá dentro ficando cada vez mais
quente, pense que sua hora chegou: vai morrer. De dentro de sua casca dura,
fechada em si mesma, ela não pode imaginar destino diferente. Não pode imaginar
a transformação que está sendo preparada. A pipoca não imagina aquilo de que
ela é capaz. Aí, sem aviso prévio, pelo poder do fogo, a grande transformação
acontece: PUF!! — e ela aparece como outra coisa, completamente diferente, que
ela mesma nunca havia sonhado. É a lagarta rastejante e feia que surge do
casulo como borboleta voante.
Na simbologia cristã o milagre do milho de pipoca
está representado pela morte e ressurreição de Cristo: a ressurreição é o
estouro do milho de pipoca. É preciso deixar de ser de um jeito para ser de
outro.
"Morre e transforma-te!" — dizia
Goethe.
Em Minas, todo mundo sabe o que é piruá. Falando
sobre os piruás com os paulistas, descobri que eles ignoram o que seja. Alguns,
inclusive, acharam que era gozação minha, que piruá é palavra inexistente.
Cheguei a ser forçado a me valer do Aurélio para confirmar o meu conhecimento
da língua. Piruá é o milho de pipoca que se recusa a estourar.
Meu amigo William, extraordinário professor
pesquisador da Unicamp, especializou-se em milhos, e desvendou cientificamente
o assombro do estouro da pipoca. Com certeza ele tem uma explicação científica
para os piruás. Mas, no mundo da poesia, as explicações científicas não valem.
Por exemplo: em Minas "piruá" é o nome
que se dá às mulheres que não conseguiram casar. Minha prima, passada dos
quarenta, lamentava: "Fiquei piruá!" Mas acho que o poder metafórico
dos piruás é maior.
Piruás são aquelas pessoas que, por mais que o fogo esquente, se recusam
a mudar. Elas acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que o jeito
delas serem.
Ignoram o dito de Jesus: "Quem
preservar a sua vida perdê-la-á".A sua presunção e o seu medo são a dura casca
do milho que não estoura. O destino delas é triste. Vão ficar duras a vida
inteira. Não vão se transformar na flor branca macia. Não vão dar alegria para
ninguém. Terminado o estouro alegre da pipoca, no fundo a panela ficam os
piruás que não servem para nada. Seu destino é o lixo.
Quanto às pipocas que estouraram, são adultos que
voltaram a ser crianças e que sabem que a vida é uma grande brincadeira...
"Nunca imaginei que chegaria um dia em que a
pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu".
Eu não quero ser piruá, nem pururuca (na
minha terra é assim que a gente chama o milho de pipoca que não estoura), quero
ser
flor branca macia e se por acaso ainda resta em mim algum
pedaço da
dura casca que não estoura, estou despejando essa parte
que não me pertence mais, a partir de HOJE toda casaca dura pode procurar outro
lugar para se encostar (rsrs).
Toda mudança é sempre bem vinda.
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